segunda-feira, julho 28, 2008

Batista-Bastos

Um vosso igual

Dobro os olhos lá para o fundo, e revejo o rapaz esguio, esgalgado e feliz a subir a colina do Bairro Alto. Deseja ver tudo para escrever tudo o que deseja ver. Julga ser detentor da palavra virginal. Os outros pertencem ao refugo de outra história; criaturas fossilizadas, ogres que a rotina tornou insensíveis, faces caídas, gestos fatigados. O rapaz esguio pensa: nunca serei como eles. O mundo que arrecada no peito é novo e original, e o daqueles abrange um episódio antigo, repleto de mitos ferrugentos. Subiu a Rua do Século, como quem amarinha para o Olimpo; entra na Redação como quem pisa chão sagrado. A partir daquele momento faz parte de uma estranha profissão, cujo exercício exige a invenção de formas de uma nova grandeza, para tornar precioso o que é precário.
Vai aprender, o rapaz esguio, esgalgado e feliz, o que hoje é o amanhã com que os jornalistas se preocuparam ontem.

Foi assim que toquei no batente da Imprensa, num dia constelado pela glória da minha escolha. Um homem de baixa estatura, sacudido, afável, colérico e generoso apontou-me uma secretária em cujo tampo estavam um maço de papel branco e uma caneta. Não me indicou só isso. Esse homem indicou-me um destino claro e um futuro marcado por uma viagem longa e incerta. Chamava-se Acúrsio Pereira, e se alguém era uma lenda no jornalismo português - ele corporizava essa lenda.
Com uma eficiência quase demencial fizera de "O Século" um jornal também lendário, cuja Redação era tida como a , ou a . No gabinete que ocupava, havia a seguinte inscrição: <<>> . A frase era de Garrett (Almeida Garrettt) e avisava a nossa consciência moral para aquilo que teríamos que fazer.

Foi ali que tudo começou. Foi ali, entre homens que eu presumia anacrônicos e declinantes, que me ensinaram a respeitar as palavras, a amá-las e a defendê-las, num tempo em que elas estavam sitiadas ou eram tenazmente perseguidas. Foi esquecida, ou deliberadamente ignorada , a história sem par dessa gente que jogara no regueirão do jornalismo a parte mais estelar das suas vidas. Eu supunha que sabia tudo; com aplicada paciência e alguma ironia de permeio a eles disseram-me que eu nada sabia. Podia agora, sem esforço, nomear esses homens esmagados pelo peso da afronta fascista, esses velhos canastrões que me iluminaram, me ensinaram, me aturaram e à minha arrogância. Homens esmagados, velhos canastrões que formavam gerações de repórteres sem procurar outra coisa que não fosse a de nos dar razões para viver com honra e para esperar com confiança. Transferiram para os mais novos os sonhos postergados, à esperança buliçosa de uma realização feliz, o júbilo de fazermos parte de uma linhagem. Entregavam-nos o testemunho para continuarmos uma corrida de obstáculos. Se vencêssemos, eles eram, identicamente, vencedores.

Eu sou eu e também sou eles. Estou a receber um prémio que mereço porque a eles é devido. A minha genealogia radica em distintas memórias procriadoras da minha memória pessoal. E lá estão o Acúrsio a gritar que o jornalismo não é para ganhar dinheiro; o Norberto Lopes a defender um jornalismo de causas; o Mário Neves a escrever uma reportagem magistral e determinante sobre a Guerra Civil de Espanha - <<>> - e a tomar partido pela causa da dignidade; José de Freitas, na pátria de Mão Tse-Tung, a revelar ao mundo que a China possuía a bomba atómica, simbolizando num texto onde a emoção se sobrepunha ao preconceito, o campo no qual deve estar todo o grande repórter; seu irmão, Amadeu de Freitas, a narrar, numa reportagem fundamental <<>>, o hoje esquecido conflito entre a União Soviética e aquele País, sem nunca deixar de inflectir para o lado justo das coisas. E lá está, agora, em terras da Palestina, Alexandra Lucas Coelho, do <<>, a afirmar-nos, em páginas emocionantes, escritas num português de lei, que todas as portas são boas para se entrar no jardim onde os caminhos se bifurcam.

A lista dos que entendem o jornalismo como arte, como combate e como coragem continua-se em vozes narradoras cada vez mais exigentes e criativas. São as previsíveis lealdades de quem acredita no valor imperativo da palavra e do poder que ela possui para alterar certas anomalias. Todas elas resultam da consciência de que a <> do jornalismo é, na realidade, a inércia do jornalismo e a negligência cúmplice do jornalista.

Pertenço a esta gente, e esta gente pertence-me. A sua história cruza-se com a minha história. Não nos esqueçamos nunca de que muitas pessoas dependem de nós: daquilo que vemos para depois dizer, daquilo que sentimos para depois escrever.

Acreditem que só merecemos alguma coisa grande quando pagamos por isso. O jornalismo deu-me tudo; e até a ausência dele me ofereceu, sempre, uma contrapartida. Passada a grandiosidade pueril das emoções primitivas, dobradas as dores, as angústias e os medos, aqui estou, junto de vocês, falho de meios e com não maiores virtudes. O rapaz esguio, esgalgado e feliz, que subia a colina do Bairro Alto, é hoje o senhor pesado, cabelos brancos, que recebe o Prémio Gazeta de Mérito com o orgulho de quem nunca traiu os testamentos legados e com a vaidade de ser um vosso igual.

Muito obrigado
Batista-Bastos

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(Texto lido no CLUBE DOS JORNALISTAS, por ocasião da entrega do Prémio Gazeta de Mérito)
Lisboa - Portugal
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Transcrevi este texto, para demonstrar de forma clara que Jornalismo se aprende exercendo, ouvindo vendo e tentando fazer o melhor. E que a ética vem de berço,que a ética vem da formação moral do jornalista, formação essa que ele traz da tradição familiar e, dos exemplos recebidos.
Acredito e a história me confirma que jornalismo é arte, jornalismo é dedicação e amor e também uma virtude uteral, que já nasce conosco.
Neste semestre em que forças ocultas se unem para aniquilar vozes que ainda sabem transformar fatos em épicos de nossa sociedade atual, que não se entregam e se vendem às benesses da imprensa marron, oportunista e comprada, transcrevi o artigo acima para reflexão e enviei a nossos "nobres" deputados, para reflexão.
Vale a pena ser jornalista sim, vale a pena ser honesto sim, vale a pena ser imparcial sim.
Filipe de Sousa

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